Como Nasce o Perfeccionismo
Você — conhece alguém ou — já se pegou na
maior do tempo se dedicando à tarefa de não deixar falhas e evitar críticas a
ponto de não conseguir se relaxar ou mesmo dormir? Gastou em um projeto mais
tempo e energia do que poderia ou deveria, chegando a ficar exausto e, ainda
assim, concluiu que ele estava muito distante do que você determinou? O nome disso é perfeccionismo.
Se você se submete à “perseguição pela
ausência de falhas e estabelecimento de metas demasiado altas de desempenho,
acompanhadas por tendência excessivamente crítica do próprio comportamento” (STOEBER
E OTTO, p. 295, 2006), saiba que possivelmente você seja um perfeccionista, e isso
não é nada saudável.
Isso porque se procura muito mais evitar uma punição do que obter uma recompensa. Tal como, medo e insegurança prevalecem. E
nem vou entrar aqui no mérito de que transtorno do pânico e transtorno obsessivo-compulsivo
estão — ou não — intimamente ligados ao
perfeccionismo.
E você já deve ter lido a respeito,
assistido a inúmeros vídeos sobre o assunto, com orientações de como ser menos
exigente consigo mesmo e, consequentemente, com os outros, os possíveis
malefícios de querer ser perfeito e como evitar tal comportamento.
Agora, como ele nasce em nós, ou melhor,
como nos tornamos, de certa forma, escravos da perfeição? Vou tratar aqui hoje
da origem do perfeccionismo, independentemente de denominações, a partir da
análise de um ícone da música dos anos noventa.
Para mostrar as origens do
perfeccionismo, vou falar um pouco de um estudo, com outra finalidade, que fiz
sobre Kurt Cobain, o vocalista da banda Nirvana.
Antes de tudo, a título de curiosidade e
me valendo ainda de Stoeber e Otto (2006), vou distinguir entre perfeccionismo
normal ou adaptativo e o neurótico
ou mal-adaptativo, uma vez que apenas
este último causaria sofrimento e prejuízo aos sujeitos.
O perfeccionismo adaptativo faria com
que você atingisse metas de modo mais racional e tivesse satisfação e um
aumento da autoestima. Os objetivos seriam elevados, mas dentro de seus
limites, o que faria com que fosse possível obter prazer apesar de os trabalhos
exigirem esforços intensos, além de que se poderia lidar de forma equilibrada
de acordo com a demanda de cada situação.
Agora vamos às raízes do perfeccionismo.
Gamble e Roberts (2005), em um estudo com
mais de uma centena de adolescentes, perceberam que filhos de pais que
alimentavam o hábito de manter comentários críticos e humilhantes sobre si
mesmos além de uma expectativa de alta performance em todos os aspectos da
vida, tinham receio de serem abandonados, tal como se sentiam desconfortáveis
ao se relacionarem.
Isso possivelmente porque há uma
profunda necessidade, ansiedade de corresponder às expectativas do outro que,
muitas vezes, é visto como perfeito, consequentemente há a evitação de críticas e, claro, a frustração, já que é impossível tal correspondência
nesses padrões. Frustração após frustração, o sujeito pode começar a perceber
que é inútil fazer algo a respeito e começar a se paralisar, a entrar num
processo depressivo.
Por que digo isso? Pois o estudo, ainda
detectou a baixa-autoestima nesses adolescentes, sendo que as filhas percebiam
mais esses comportamentos e eram mais sensíveis a eles.
Vale lembrar que a baixa autoestima faz muitas vezes com que haja uma luta do indivíduo em evitar que descubram o quão “ruim” ele é.
Mais do que isso, é um dos pontos primordiais da depressão.
Fazendo uma analogia com Kurt, seu
perfeccionismo pode ter tido origem nas punições proporcionadas pelo seu pai,
ou melhor, havia uma relação parental aversiva. No caso do cantor, o pai vivia
o criticando, por coisas banais, como por exemplo, quando Kurt derramava um
copo d’água num restaurante. O músico, em gravações disponibilizadas num
documentário póstumo, About a Son (2006), relata que o pai estava muito
preocupado com o que os outros pensariam daquilo, se sentia intimidado pelo que
pensariam as pessoas à sua volta, como se o filho não pudesse errar, e errando
devesse ser castigado. O resultado de tais eventos é a obtenção de uma vinculação
insegura.
Vinculação insegura se traduz por
relações hostis e cheias de inconstâncias, o que emperra o desenvolvimento dos
filhos, além de os levar a uma gama de desajustes individuais e interpessoais,
de modo que os relacionamentos não se sustentem.
Por outro lado, pais que investem afeto na relação proporcionam a vinculação segura a seus filhos,
instilam esperança por meio dessa vinculação, estimulam os filhos a progredirem (GAMBLE E ROBERTS, 2005).
Assim sendo, aqui pode estar a chave
para uma vida saudável e uma hipótese para se impedir a instalação do
perfeccionismo.
Hipótese que poderia ser levantada no
caso do cantor, pois ele, ainda no documentário, relata que mesmo adulto se
recriminava por não agir de forma apropriada em determinadas ocasiões. Nesses
instantes ficava com muita raiva de si mesmo, logo fora condicionado a não
errar, a perfeição era uma lei a ser cumprida.
Igualmente, no início do Nirvana, o
músico dizia que uma banda precisava ensaiar ao menos cinco vezes por
semana (MONTAGE OF HECK, 2015). O produtor de Nevermind, Butch Vig,
corrobora esse perfeccionismo do músico. Segundo ele, Kurt interferia em
tudo. Enquanto se arrumava o som de instrumentos, ele
se aproximava e determinava que se tirasse um agudo (MUSICA.UOL, 2011).
Sendo assim, o possível modo de
funcionamento, ou melhor, o modelo cognitivo de Kurt Cobain dentro da Terapia
Cognitiva provavelmente era esse: Situação: gravar
músicas. Pensamento automático: nunca faço algo bem feito. Reação:
raiva, tristeza e ansiedade, ensaiar até a exaustão.
O que poderia derivar de:
Crença Central: sou incompetente. Crença intermediária:
para não ser um incompetente, tenho que ensaiar até a morte. Pensamento
automático: nunca faço algo bem feito.
Detalhe: o músico estava constantemente
vigilante e insatisfeito com os resultados, embora quisesse passar uma imagem
de que não estava nem aí para eles.
Tá, mas como Kurt poderia ter escapado
disso e não levado esses padrões para a vida toda? Por exemplo, questionando a
si mesmo se o problema era de fato dele, e não de seu pai. Será que
simplesmente seu pai não era intolerante, violento? Errar era privilégio apenas
dele, Kurt? Que orientação Kurt daria a um garoto na mesma situação? Outra
questão? Ele alcançaria o sucesso sem essa busca pela perfeição? Sim, atingir os objetivos dentro dos padrões nos quais ele buscava pode, na
realidade, atrapalhar os resultados, inevitavelmente afetar a própria saúde física
e mental — às vezes prejudicar a saúde daqueles com quem se relaciona, conforme
possivelmente aconteceu com Kurt. Ao invés de perseguir suas metas com
racionalidade, que engloba também aceitação dos próprios limites, o músico quis
puramente abolir seus limites.
Em suma, deveria levar em consideração
seus limites para alcançar determinada meta, fosse ela a de não derrubar um copo
d’agua no restaurante.
Para se ter uma ideia melhor, se, ao
invés de ser punido, Kurt fosse gradativamente reforçado a não derrubar copos
d’água no restaurante, aí sim estaríamos falando de vinculação segura. Para
isso poderia ser combinado que a cada ida ao restaurante sem derrubar copos
d’água, o músico teria direito à escolher sua sobremesa ou deixaria de ajudar
em alguma tarefa de casa por uma semana. De tal modo, ele saberia que se não
fosse tão bom sempre, ainda assim não seria punido, teria um ganho menor
apenas. A não retirada da tarefa de casa, que o faria ter menos tempo para
brincar, não seria relacionada a uma mera punição.
Enfim, agindo desse modo, muito
provavelmente a chance de que alguém desenvolva o perfeccionismo será
drasticamente reduzida.
Para mais informações em relação a
outros aspectos que igualmente nos afligem, acesse o link abaixo, eles são estudados com detalhes em meu artigo por meio da análise da
personalidade de Kurt Cobain: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/cobain https://e-psi.cfp.org.br/cadastro/2020-andre-luis-claro/
Referências
COBAIN Kurt, About a Son. Direção: AJ Schnack, EUA. 2006.
Disponível em https://vimeo.com/54160755 acesso: 26
fev 2020.
COBAIN: Montage of Heck.Direção: Brett
Morgen, EUA. Produção:
Brett Morgen, Danielle Renfrew, 1 cd.
2015.
GAMBLE, Stephanie A; Roberts,
John E. Adolescents’ Perceptions of
Primary Caregivers and Cognitive Style: The Roles of Attachment Security and
Gender. Cognitive Therapy and Research, v. 29, n. 2, 2005. https://www.acsu.buffalo.edu/~robertsj/gamble&roberts.2005.pdf.
Acesso em 19 maio 2020.
Musica, Uol, 2011. Disponível em: https://musica.uol.com.br/teste/ultimas-noticias/2011/08/24/kurt-cobain-foi-um-pe-no-saco-durante-gravacoes-de-nevermind-diz-produtor.jhtm?action=print. acesso em 14 março 2019.
STOEBER J, Otto K. Positive conceptions of perfectionism:
approaches, evidence, challenges. Pers Soc Psychol Rev.
2006;10(4):295‐319. doi:10.1207/s15327957pspr1004_2
Ótima reflexão! Muitas pessoas sofrem por serem perfeccionistas e acabam interferindo de forma ruim em seu trabalho e até mesmo em sua vida pessoal, ficando insatisfeitas consigo mesmas. E pensar quais fatores a fizeram tornar assim é muito relevante, um acompanhamento terapêutico ajuda muito. E os responsáveis que estão com crianças pequenas, devem se policiar quanto suas ações para que não prejudiquem o futuro dos filhos. Validar cada ação e entendê-las faz toda a diferença! Valeu a leitura👏
ResponderExcluirCom certeza, Juliana, autoconhecimento sempre. E agradeço o seu comentário.
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